Segmento Primeiro
Já morri tantas vezes
Em épocas da minha vida

E não me é estranha a sensação de ir
Me são íntimas a equidistância e a ausência
A morte cuida de mim, protege, quer me levar
Me olha de noite e de dia
E mostra que quer companhia
As vezes sinto necessidade de morrer um pouco
E me entregar aos caprichos dela
Não resistirei sempre
Ela me ensina lição simples
Que parece já ser sabida
Abrir e fechar a janela
A cada etapa vivida
Segmento Segundo
Dos sentimentos que causam a morte
Um é o que mais me emudece:
-O do quarto escuro
A morte vem quando apago a luz
E senta-se a meu lado
No banco de minha escrivaninha
Olha cada objeto como a ver brinquedos
Revela mistérios pelas luvas
Que envolvem seus gélidos os dedos
Não faz ruídos
Pois é silenciosa e carente
Ela quer ser minha amiga
Me pergunta o que é ser gente
Segmento Terceiro
Em meu quarto
Há apenas quatro objetos
Um quadro pintado por mim
Uma caneta
Um caderno de anotações
E uma luminária
Noite passada não havia vento
E estranho fato aconteceu
O quadro balançou na parede
A caneta rolou ao chão
O caderno virou as folhas
Como que a bater asas
A luminária misteriosamente desligou-se
Não são sutis os movimentos da morte
Sumiu me deixando a pergunta
-Estar vivo é alguma sorte?
Fui tomar um copo d'água na cozinha
Segmento Quarto
De certa forma
Minha solidão me basta
E não preciso de outra
Prá me trazer angústias e vantagens
De certa forma
Minha dor me afasta
De rituais da vida gasta
Que as vezes chego a rir sozinha
Não sei porque motivo
Desse riso a morte gosta
Me seduz e me enrosca
Quer minh'alma
Quer que eu cante
Diz que é a minha amante
Segmento Quinto
A morte nunca morre
As pessoas sim
A morte tem ciúme de mim
Põe enigmas na janela
Me ensina a conviver com ela
As vezes me ama outras me odeia
As vezes a amo outras a odeio
Em meu ouvido sussurra:
-Vida é fim, início ou meio?
Aprisiona a sobriedade
Tranca as portas, joga as chaves
Me promete liberdade
Segmento Sexto
Angústia e euforia
Novamente o sopro dela
O pó da cômoda é purpurina
Na fresta da janela
Há borboletas
Que cansaram de se debater
Por um pouco de ar
A morte me chama prá dançar
Rodopia, faz-me rir
Depois de mim
Quem ela virá seduzir?
A quem entrelaçará seus dedos
Arrancando pavores e medos?
Sobre quem recitará seu mantra mais profundo?
-Viver o infinito, morrer prá esse mundo?